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Quando, no início da década de 50 do século passado, Berta Cardoso estreou este fado, o nosso mundo rural não era ainda, como hoje o é, uma espécie em extinção... A desertificação do Portugal profundo, o abandono das terras, a busca de uma outra vida nos meios urbanos, dentro e fora do país, ainda não ocorrera. Nesse tempo, as pessoas, mesmo as mais citadinas, conheciam bem essa outra realidade regida, mais pelas leis da Natureza do que pelas dos homens... E, assim, melhor entendiam e, portanto, respeitavam, esse mundo que tanto, obrigatoriamente, difere do citadino onde, quando chove, se pode mesmo assim calçar sapato de polimento, porque se anda na calçada... Nesse tempo, que era ainda um tanto o que a Severa vivera, as letras do Fado contavam histórias, descreviam personagens, que eram o elo de união entre esses dois mundos; mais, o Fado institui precisamente, como mito fundador, a Severa (uma personagem dos bas-fonds urbanos) e a história dos seus (des)amores por um fidalgo, que obviamente personifica o mundo rural, às portas da Cidade; é nesse mundo rural que se inscreve e escreve a ligação desses urbanos, que nunca cortaram o cordão umbilical com a terra, e que, por isso, ou continuam a procurá-la nos retiros e hortas onde vão farrar e fadistar, ou sistematicamente a importam para a cidade através de uma das suas mais ancestrais festas, a do toiro e do cavalo, isto é, através das largadas, entradas de toiros e das toiradas, esses novos urbanos matam saudades, revivem a sua natural união à terra...
Ora, este fado, que vem na sequência do Tia Macheta (que diz do nascimento do "fado triste da Mouraria", na hora em que o fidalgo não voltou para a Severa) e do Cinta Vermelha (que estabelece a íntima ligação entre o Fado e a Festa Brava, que vive através do Amor dos seus mais representativos actores), forma com eles uma trilogia da temática fadista por excelência, sendo interessante verificar que tenha o autor da letra instituído, neste e no Cinta Vermelha, um certo paralelismo das personagens com as do Tia Macheta... mas isso fica para os estudiosos do Fado, por certo mais competentes do que eu nessas matérias. Curioso não deixa de ser igualmente o facto de, em qualquer das letras destes 3 fados, ser explícito o nome das cantadeiras - a Severa e a Berta - o que, lá por isso, não lhes retira a intemporalidade, permitindo um estimulante encontro com um passado que questiona e desafia o presente...
Este Fado é, quanto a mim, um ícone da (ainda) nossa ruralidade, que perdura na Festa do Cavalo e do Toiro, amante da Canção, de todas mais portuguesa- o Fado, do qual se não deslarga e traz de braço dado, numa celebração amorosa que perdura(rá)...